letras manchadas de sangue,


                                frases esquartejadas,


                                                        espalhadas pelo chão




sábado, 4 de abril de 2009

A Outra Vida - Parte 1 de 3


Era uma manhã de domingo de sol forte. Dona Rita acordou antes das oito, levantou-se e foi tomar um banho. O marido ainda dormia, um sono pesado e sem sonhos. Voltou ainda molhada para o quarto, vestiu a roupa de baixo e buscou no guarda-roupa o vestido de seda que o marido lhe dera de presente ao voltar de uma de suas tantas viagens de negócio.

Colocou o vestido em cima da penteadeira e ficou em frente ao espelho observando seu corpo. Embora estivesse já com mais de 50 anos, ainda mantinha-se conservada, o que era motivo de inveja para suas amigas. Olhou o relógio e vestiu correndo a roupa, deu alguns retoques no cabelo e desceu.

– Seu Bartolomeu não vai tomar café com a senhora? – perguntou Conceição, uma mulata gorducha que trabalhava na casa há mais de quinze anos.

– Não sei, ele deve descer mais tarde. Quando ele acordar diga a ele que fui à missa e que depois vou passar no centro. Talvez eu não volte para o almoço.

– Mas a senhora não vai tomar café?

– Estou com pressa.

Tomou de um gole a xícara de café e saiu apressada.

Ao voltar, pouco depois da uma da tarde, reparou que a mesa estava posta, intocada. Perguntou pelo marido.

– Seu Bartolomeu ainda não desceu, madame. – respondeu contrariada a mulata – Posso tirar a mesa ou a senho...

– Pode tirar, já almocei. Mas o que está acontecendo com este homem? – perguntou subindo as escadas.

Conceição começou a tirar a mesa, começando pelos pratos. Quando estava arrumando tudo no armário ouviu um grito que lhe gelou a alma. O susto foi tamanho que ela não conseguiu segurar os pratos, que se espalharam em cacos pelo chão. Era Dona Rita. A mulata subiu correndo as escadas e viu da porta a patroa de joelhos em cima do marido:

– Acorda Bartolomeu! Acorda!
– O que foi, madame?

– Ele não quer acordar! Me ajude, vamos! Acorda, Bartolomeu!

O desespero da patroa era tamanho que Conceição se pôs também a chacoalhar e gritar para que o homem acordasse. Foi inútil. Confusa, Conceição desceu e preparou correndo um copo com açúcar. Tremia tanto que nem conseguia segurar direito o copo. Bebeu ela mesma o copo de água com açúcar e preparou outro para a patroa.

– Foi um ataque cardíaco, Dona Rita. – disse o doutor.

– Mas ele não tem problema cardíaco, Dr. Carlos. – perguntou indignada Dona Rita.

– O coração é assim mesmo. Bate, bate, bate e, sem mais nem menos, pára.

– Mas ele é muito jovem ainda Dr., não tem nem sessenta anos. Não é justo! Um homem tão bom, nunca fez mal a ninguém. Ajuda todo mundo, dá dinheiro aos pobres.

– Dona Rita, sei que isso não é nenhum consolo, mas pelo que pude ver ele se foi sem sentir nenhuma dor. Nós talvez não tenhamos a mesma sorte. Vou receitar uns comprimidos para a senhora ficar mais calma. – estendeu a mão com a receita médica, mas Dona Rita nem percebeu.

– Isso não vai trazer meu Bartolomeu de volta, eu quero meu Bartolomeu...

Dr. Carlos era um médico experiente. Em seus muitos anos de medicina já tinha aprendido muita coisa sobre a natureza humana. Sabia que Dona Rita ainda passaria algum tempo no estado de choque em que se encontrava. Depois o choque se transformaria em tristeza e o tempo se encarregaria do resto. Bastava apenas tentar atenuar seu sofrimento, mantendo sua mente afastada da realidade, sob o efeito dos calmantes. Entregou a receita a Conceição, se despediu de todos e foi embora.

Os preparativos para o velório e o enterro foram feitos por Davi, um dos sobrinhos de Bartolomeu. Davi era advogado tributarista, nunca passava um mês sem visitar a casa de Dona Rita. Nos últimos anos as visitas se tornaram mais escassas, pois, segundo ele, havia recebido uma promoção e estava trabalhando feito louco. Sempre com muita pressa, telefonava meia-hora antes para avisar que estava chegando. Vestindo a roupa do trabalho, chegava e ia direto para o banheiro. Lá trocava os sapatos por sandália e o terno por um short e camiseta, que já trazia em sua pasta. Só depois se sentava à mesa. Em suas visitas era sempre alegre e extrovertido, muito diferente do rapaz que estava agora em pé ao lado de Dona Rita no velório de seu tio.

Seu Bartolomeu era contador. Começou sua vida assim. Honesto e trabalhador, não demorou até conquistar bons clientes. Montou então outros escritórios nas cidades vizinhas e começou a diversificar seus investimentos. Antes de morrer já tinha vários imóveis e levava uma vida de causar inveja. Dava festas e banquetes, convidava todos os seus funcionários e pedia para que eles próprios convidassem todos que quisessem. Era também bom marido. Dona Rita só tinha uma queixa: não ter tido filhos, este sempre foi seu maior desejo. Um casal exemplar, toda a cidade dizia.

O velório se deu na própria casa. A sala estava completamente lotada. Amigos, funcionários de todos os escritórios, inclusive os das outras cidades, e até alguns políticos compareceram. Dona Rita, dopada pelo efeito dos calmantes, ficou sentada ao lado do caixão contemplando o corpo imóvel do marido. A única vez que tirou os olhos do caixão foi para pedir a Conceição que trouxesse um copo de água para tomar mais uma dose dos comprimidos receitados pelo Dr. Carlos. Davi encarregou-se de manter os amigos menos chegados à distância da viúva, com mil desculpas.

Clique aqui para ler a parte 2 de 3

2 comentários:

denkodenko disse...

fico feliz que você arrumou uma maneira que não o TribalWars para gastar o muito tempo que voce tem disponivel Ivo, meus parabens....seu blog esta show..
E eu tambem estou com muito tempo livre para ler essas @#*&%$
abs
Valdir Horodenko

Ivo disse...

Putz, Valdir... Pelo menos você é sincero, mano.

Postar um comentário